Ciúme: qual é o limite?

“O ciúme é aquela dor que dá quando percebemos que a pessoa amada pode ser feliz sem a gente.” (Rubem Alves)

“De todas as enfermidades que acometem o espírito, o ciúme é aquela a qual tudo serve de alimento e nada serve de remédio.” (Michel de Montaigne)

Recentemente, fui convidada a falar sobre o “ciúme”: comportamento que, tantas vezes, causa sofrimento, desconstruindo as relações e que, no entanto, se mantém como padrão, em diferentes contextos. Eventualmente, somos levados a esta emoção comum, porém, em alguns casos, o que seria aceito vai se modificando e acaba por tornar-se um padrão disfuncional de atitudes, conhecido como “ciúme patológico”. As duas citações acima poderiam ilustrar, de certa forma, as diferentes manifestações do ciúme propriamente dito e daquele que pode ser considerado como nocivo ou doentio.

Podemos entender por ciúme o conjunto de emoções desencadeado pela ameaça da perda (real ou imaginária) do parceiro ou da estabilidade da relação. Estudos indicam que o comportamento de “sentir ciúme” fez parte da evolução humana, com a finalidade de “solucionar um problema recorrente de sobrevivência e reprodução: a ameaça real da traição” (Buss, 2000). A manutenção da espécie, portanto, seria facilitada quando o comportamento reprodutivo ficasse limitado ao grupo comum, no caso, aos parceiros escolhidos. Desde tempos remotos até os dias atuais, este comportamento tornou-se uma forma de adaptação necessária à sobrevivência, pois sempre existe a possibilidade de que o outro: o “diferente”, possa servir de ameaça. Sob este ponto de vista, sentir ciúme passou a ser algo aceito e até esperado nas relações.

Além de comportamento selecionado para a sobrevivência da espécie, o ciúme é um comportamento cultural, uma vez que toda sociedade é marcada, de alguma forma, por ele. Há quatro séculos, Shakespeare, em sua obra Otelo: o Mouro de Veneza, já se reportava ao conflito, levantando, por meio de seus personagens, questões como preconceito e ciúme. O personagem central, mesmo com todas as indicações de amor dadas pela esposa, termina por tirar-lhe a vida, motivado pela idéia obsessiva de traição. Depois disso, ciente da fidelidade da esposa, comete suicídio. Fica claro que o comprometimento da autoestima do personagem: muito vulnerável ao julgamento das outras pessoas e, portanto, inseguro em suas atitudes, contribui para o desfecho da história. Final trágico, no entanto, não tão diferente daquilo que, muitas vezes, ocorre nos tempos atuais.

Sem querer, muitas vezes, o parceiro termina por incentivar um padrão que pode tornar-se perigoso para a relação, quando com palavras ou outras atitudes, do tipo “Você fica lindo quando fica ciumento”, ou “Adoro ver você irritada”, acaba fazendo com que a freqüência das tentativas de controle aumente, levando a conflitos constantes e à desestruturação da relação. Atitudes ciumentas podem levar ao desgaste, não somente da relação, mas do próprio indivíduo que, de forma automática, busca alternativas para manutenção do interesse do outro, a fim de que não sejam abertas possibilidades para que o desconhecido, de fato, comprometa a estabilidade da relação.

Quando nos deparamos com atitudes de descontrole emocional, como agressividade ou tentativas constantes de controlar o parceiro, causando prejuízos, muitas vezes irreparáveis, torna-se evidente que tal padrão já ultrapassou o limite do aceitável, passando a patológico, o que pode ser considerado uma ameaça à vida. Exemplo disso pode ser o que acompanhamos estarrecidos de nossas casas, no caso da adolescente “Eloá”, mantida em cárcere privado e morta pelo ex-namorado, em 2008, e tantos outros que poderiam ser, lamentavelmente, citados.  O ciúme patológico aponta uma questão que requer atenção, por trazer danos e ameaça à vida. Este é um transtorno freqüente nos consultórios psiquiátricos e psicológicos e, infelizmente,  faz parte de estatísticas de causas de homicídio.

Como então, perceber que o ciúme já passou do ponto e que pode ter se transformado na “Síndrome de Otelo” ou ciúme doentio?

A pessoa com ciúme patológico experimenta sentimentos ambivalentes: ao mesmo tempo em que “ama” seu parceiro, também o “odeia”, pela idéia obsessiva de que este pode tornar-se autor de seu sofrimento (perda), o que aumenta a probabilidade de comportamentos disfuncionais (normalmente de controle excessivo) e, muitas vezes, agressivos, no sentido de neutralizar o temido abandono. Comportamentos de verificação constante, que invadem a privacidade do parceiro, como mexer em pertences pessoais (carteiras, bolsos de roupas, anotações); vasculhar com frequência a página da rede social, na tentativa de encontrar algum indício de possível traição; ler mensagens pessoais no celular ou procurar números desconhecidos no aparelho para verificar se surgiu alguém “diferente”, podem indicar sinais de ciúme patológico e requerem atenção especial. O quadro de ciúme doentio pode estar presente também em outros transtornos psiquiátricos como TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), pela idéia obsessiva de traição e rituais de verificação, Transtorno Paranóide ou em quadros de Alcoolismo.

É necessário lembrar que o ciúme comum, mantido histórica e culturalmente para a preservação da espécie, serve para proteger a relação, enquanto o ciúme patológico é nocivo, caracterizado pela necessidade de controlar e possuir a outra pessoa, o que, inevitavelmente, leva ao sofrimento de ambos os parceiros. O ciúme excessivo leva ao rompimento dos laços pelo desgaste constante, imposto na tentativa da manutenção da relação a qualquer custo.

Qualquer relação que desenvolva sentimentos de dependência extrema termina por passar do ponto. É necessário que, por mais que se ame o companheiro ou companheira, sejam cultivadas e preservadas as características individuais que, em determinado momento da relação, serviram como estímulo para a conquista. Promover a autoestima, oportunizando-se cuidados próprios e a valorização constante do papel que se ocupa na relação, facilita a manutenção de relacionamentos mais duradouros e felizes, afinal não é possível cuidar do outro sem o cuidado próprio. Pouco podemos oferecer quando nossa autoestima está fragilizada e nos sentimos, portanto, inseguros e desgastados. O indivíduo que se torna dependente de uma relação amorosa para sobreviver, termina por perder o principal elemento que nos fortalece contra as adversidades, próprias do cotidiano: o amor próprio, e deixa de contribuir de forma efetiva para o bem de qualquer relação.

Referências Bibliográficas:

Baum, W. M. (2006). Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Porto Alegre: Artmed.

Tatiana Berta

Psicóloga e Psicoterapeuta Comportamental e Cognitiva

CRP (06/93349)

São Paulo/SP

*O conteúdo do texto é informativo e não substitui a consulta realizada em consultório.